
Há umas semanas deparei-me com uma notícia no mínimo perturbadora. Uma alta patente do exército americano, ligado aos “julgamentos” (se é que lhes podemos chamar isso...) dos prisioneiros de Guantanamo, terá dado uma entrevista digna da Idade Média. O dito Sr., em pleno horário nobre de uma rádio muito popular, terá enumerado todos os advogados e sociedades de advogados americanos que representam prisioneiros de Guantanamo e, de seguida, apelado ao povo americano e às empresas americanas para deixarem de trabalhar com estes advogados e sociedades (entre as quais se contam as principais sociedades americanas)!
O argumento do Sr. é fabuloso. Na cabecinha iluminada dele, os advogados e sociedades que defendem os detidos de Guantanamo são anti-patriotas, amigos e apoiantes dos “terroristas”! Pior ainda, a maioria fazia-o de borla no âmbito dos seus projectos “Pro-Bono”. E continuou, explicando que as grandes empresas americanas que recorriam aos serviços destes advogados tinham de decidir em que é que verdadeiramente acreditavam. O Sr. estava certo que muitas delas não queriam continuar a trabalhar com estes advogados, já que as próprias empresas tinham perdido muitos trabalhadores nos ataques às Torres Gémeas. Portanto, o exército tinha o direito e o dever de informar as pessoas sobre quais os advogados que não eram patriotas e ajudavam os “terroristas”!
Este argumento é magnífico, e era exactamente o que faltava para tornar os processos de Guantanamo ainda mais justos. Já não basta os prisioneiros não saberem do que são acusados (ou melhor, na cabeça do governo americano, eles sabem o que fizeram, portanto o governo não tem nada lhes contar... pode prejudicar a investigação...), não basta não terem direitos, agora só faltava também não terem advogados. De facto, os advogados não fazem falta... os detidos não só já “sabem bem o que fizeram”, como também “têm a obrigação de saber que são culpados”... Se calhar está na altura do Bush e seus amigos lerem o “Processo” de Kafka. Ou se calhar já leram, e inspiraram-se no livro para estruturarem os processos de Guantanamo... afinal parece que o Kafka era um vidente!
Portanto, a moda do momento é o julgamento sem acusação, sem regras, sem direitos, com normas retroactivas (violando o princípio base do direito criminal “nulla poena sine legem”), e agora sem direito de defesa e sem direito a defensor... E tudo sem poderem invocar o direito internacional que, por decisão dos próprios acusadores/julgadores, não se aplica no “buraco negro” de Guantanamo...
Até veio mesmo a calhar... A propósito de direito internacional, esta semana chegaram-me notícias da Austrália, no mínimo pertubadoras, sobretudo tendo em conta a postura da Administração Bush nesta matéria. Decorre, presentemente, em Sidney, o primeiro inquérito oficial à morte dos “Balibo Five”, cinco jornalistas radicados na Austrália (3 australianos, 1 neozelandês e 1 britânico) que foram mortos aquando da invasão indonésia de Timor em 1975. A versão da Indonésia tem sido sempre a de que os 5 eram guerrelheiros da FRETILIN, a da Austrália (vergonhosamente) a de que teriam sido apanhados no fogo cruzado, a do resto do mundo (pelo menos dos honestos e pensantes, e incluindo a das pessoas que presenciaram os acontecimentos), a de que tinham sido conscientemente assassinados! Até não custa muito a compreender a tese da Indonésia... não há piores guerrilheiros do que os jornalistas... aliás, há quem diga que uma das causas da derrota americana no Vietnam foi a imprensa... livre! O que, aliás, levou à forte censura que se verifica no Iraque sob o pretexto da “segurança nacional”... The pen is mightier than the sword!
Voltando ao inquérito que decorre em Sidney, uma testemunha que combatia no exército indonésio revelou, esta semana, que a justificação para a ordem Indonésia de assassinar os 5 jornalistas foi “nesta guerra não se aplica o direito internacional, se se aplicasse não podíamos matar jornalistas!!!” Foi esta a justificação dada pelo oficial indonésio que deu a ordem! Quando li esta notícia arrepiei-me todo... vieram-me imediatamente à memória as palavras de Bush, Chenney, Rice e companhia: “à guerra contra o terrorismo e aos prisioneiros de Guantanamo não se aplica o direito internacional!” Ou seja, não se aplicam as regras criadas após a Segunda Guerra Mundial, destinadas a evitar a repetição dos crimes da Alemanha Nazi! Os mesmos crimes que estão a ser cometidos, hoje em dia, pela administração Bush e o exército dos Estados Unidos. Será que esta já era a doutrina oficial dos EUA quando Gerald Ford e Henry Kissinger deram o OK à Indonésia para invadir Timor em 1975?
O que esta gente não compreende é a “caixa de pandora” que acabou de abrir... Os princípios de direito internacional não são relativos, não se aplicam só quando nos dá jeito! São absolutos, têm aplicação Universal, sempre! Guantanamo é um lugar na Terra, e mesmo que não fosse, mesmo que fosse em Marte, o direito internacional aplicava-se, pela simples razão que há lá pessoas! É melhor não dizer isto muito alto, senão ainda se lembram de declarar que os detidos de Guantanamo não são pessoas... ou se calhar já o fizeram... embora não expressamente!
Esperemos que toda esta alarvidade acabe em breve, e esperemos que, tal como em Nuremberga, seja feita justiça... Sim, ouviram bem! Na minha opinião, para se repor equilíbrio no mundo e fazer as pessoas voltarem a acreditar novamente no direito internacional, Bush e companhia devem ser julgados num tribunal internacional, por crimes de guerra. Se devem ser condenados à pena de morte ou não, isso já é outra questão... Para mim, a resposta é simples: NÃO! Sou contra a pena de morte em qualquer circunstância! É um princípio absoluto, uma regra que não muda consoante a identidade do criminoso ou a natureza do crime.
Opinião chocante? Admito que possa ser para alguns. Mas (dando uma de criança mimada) o blog é meu! Exprime as minhas ideias. Se quiserem ler leiam, se não quiserem, chamem-me terrorista e enviem-me para Guantanamo! THE PEN IS MIGHTIER THAN THE SWORD!
Em jeito de conclusão, voltando ao tema de abertura deste post, a ordem dos advogados americana (American Bar Association) e as sociedades de advogados visadas pelo militar já reagiram... Fizeram barulho, acusaram o governo e o exército americano de serem a negação da própria Constituição do país. Explicaram que o direito de defesa e o direito a um defensor são princípios base de qualquer Estado que se proclame democrático, a par do princípio de que “todos são inocentes até prova em contrário!” Também explicaram ao governo e ao exército que não têm, nunca tiveram, e nunca vão ter medo; e que continuarão a acreditar na justiça e no direito!
O que a administração Bush ainda não entendeu é que os advogados surgiram da necessidade de proteger e defender os desprotegidos (quem quer que fossem, e qualquer que fosse a acusação contra eles), e que em todas as ditaduras (mesmo as que se proclama democracias) houve sempre advogados com coragem para lutar contra o poder instituído. Nas palavras de Manuel Alegre, na “Trova do Vento que Passa”:
“Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.”
Todos os anos entram mais de 500 alunos para a Faculdade de Direito de Lisboa, todos têm oportunidade de ouvir esta canção. Infelizmente, muitos são surdos, dos que ouvem, poucos são os que compreendem. Mas os que compreendem, esses acredito que sejam tocados para a vida. Pessoalmente, ainda me arrepio só de pensar na letra... nem preciso de a ouvir cantada. Tenho orgulho da profissão que escolhi! THE PEN IS MIGHTIER THAN THE SWORD!
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